sexta-feira, 26 de março de 2010

Preparem seus revólveres…

Pode ser que em terras americanas a adoração seja maior, mas não há bom cinéfilo que resista a um faroeste. O gênero, que tem passado por revisões recentemente em Hollywood, nasceu quase ao lado do cinema narrativo, em 1903. Marco inicial nessa história, O Grande Roubo do Trem não tem o charme de um Viagem à Lua, que envelheceu muito melhor, mas mostra sua importância pungente para o desenvolvimento da narrativa cinematográfica.

Composto por mais de uma dúzia de unidades dramáticas e contando a história já explicada no título, não há nada de surpreendente na moral corretíssima e no âmbito técnico do filme de Edwin S. Porter. Ainda assim, quem se arriscar pode observar uma das primeiras cenas de dança da história do cinema, o domínio narrativo pioneiro do diretor Porter e uma das marcas mais duradouras e homenageadas do cinema mudo: a intensa dramaticidade dos acontecimentos, encenados com alarde e teatralidade.

Ah, e não é a toa que o take em que um dos assaltantes atira diretamente na tela entrou para história: eis um recurso de diálogo e interatividade inédito na época e, lamentavelmente, ainda pouco usado até hoje. Naqueles tempos do teatro, “quebar a quarta parede” não era um tabu tão grande quanto é (injustamente) hoje.

no 1001

O Grande Roubo de Trem (The Great Train Robbery, EUA, 1903) 12 min. Mudo P&B (colorizado à mão).

Direção: Edwain S. Porter.

Roteiro: Scott Marble, Edwin S. Porter.

Fotografia: Edwin S. Porter, Blair Smith.

Elenco: A.C. Abadie, Gilbert M. “Bronco Billy” Anderson, George Barnes, Walter Cameron, Frank Hanaway, Morgan Jones, Tom London, Marie Murray, Mary Snow.

… Existe um plano extra, o mais conhecido do filme, mostrando um dos ladrões atirando diretamente na tela. Ao que parece, esse plano algumas vezes era mostrado no começo da película e outras, no fim. De qualquer forma, dava ao espectador a impressão de estar bem na linha de fogo… (Edward Buscombe)

terça-feira, 23 de março de 2010

O pop não poupa ninguém…

Um restaurante enorme, lotado, com pôsteres de filmes cult e clássicos espalhados por todas as paredes, serve milkshakes de cinco dólares nomeados em homenagem a lendária dupla Dean Martin e Jerry Lewis, recebendo seus clientes com garçonetes vestidas de Marilyn Monroe, que andam pelas mesas como se fosse a coisa mais natural do mundo. A descrição inesperada poderia ser desconcertante, se não estivesse sobre o olhar soberbamente natural da câmera de Quentin Tarantino, muito mais livre nesse Pulp Fiction, sua obra revolucionária de 1994, do que em suas investidas mais recentes.

Tarantino faz do pop uma extensão natural do nosso cotidiano, filmando absurdos com um senso de acaso fantástico, colocando atores simbólicos em personagens tão irreais quanto críveis na estrutura e no universo próprio que o diretor criou para suas obras. Aqui, ele abusa da violência para contar as histórias entrelaçadas de Vincent Vega (John Travolta), um gângster meio destrambelhado que se mete em uma confusão das boas ao lado do parceiro mais filosófico, Jules Winnfield (Sam Jackson), e de Butch Coolidge (Bruce Willis), boxeador em fim de carreira que não cumpre uma ordem do chefão Marsellus Wallace (Ving Rhames) e tenta escapar com vida da perseguição resultante.

Com essas e outras histórias coalhadas de violência e abusando do tema “drogados, corruptos e desencaminhados”, o diretor realiza uma de suas primeiras proezas cinematográficas, conferindo novo frescor e credibilidade ao cinema independente americano, ressucitando astros (não dá para imaginar ninguém além de Travolta como Vega) e ainda achando tempo para dar profundidade aos personagens que mistura de forma tão saborosa (o monólogo final do personagem de Sam Jackson é de arrepiar).

Pulp Fiction é divertido, chocante e não abre concessões. Mas, acima de tudo, é entretenimento de primeira, como só Tarantino sabe fazer.

no 1001

Pulp Fiction – Tempos de Violência (Pulp Fiction, EUA, 1994) 154 minutos. Som/Cor.

Direção: Quentin Tarantino.

Produção: Lawrence Bender.

Roteiro: Quentin Tarantino, Roger Avary.

Fotografia: Andrzej Sekula.

Elenco: Tim Roth, Amanda Plummer, John Travolta, Samuel L. Jackson, Frank Whaley, Burr Steers, Bruce Willis, Ving Rhames, Rosanna Arquette, Eric Stoltz, Uma Thurman, Harvey Keitel, Maria de Medeiros, Christopher Walken, Steve Buscemi, Quentin Tarantino.

… Apenas ocasionalmente – como no episódio pesado e feio no porão, e em algumas cenas românticas anêmicas – Tarantino parece estar fazendo força, embora mesmo aqui seu projeto global fique evidente: expulsar a vida real e as pessoas reais de uma vez só e para sempre do filme de arte e substituí-las por provocações genéricas e homenagens variadas, imbuídas de estilo e atitude, construindo um verdadeirmo monumento ao conhecimento cinematográfico presumido do espectador… (Jonathan Rosenbaum)

sexta-feira, 19 de março de 2010

E assim começa o cinema…

1902. O cinema ainda engatinhava com os curtas dos Irmãos Lumiére, reconhecidamente os pais da sétima arte, quando um ex-mágico fez suas próprias regras, ralizando um filme ao qual podem ser atribuídos muitos títulos de “primeiro”. Para começar, é o pioneiro da ficção científica, baseando-se em um livro de Júlio Verne para tirar de sua literatura pop as referências e visuais que são padrões até hoje na realização do cinema. Mais ainda, é a narrativa mais complexa de sua época, contando com um número surpreendente de unidades dramáticas e realizando uma encenação teatrak que não precisa abandonar as possibilidades de uma arte como o cinema para sê-lo.

Como ex-ator de teatro, Meliés abusa da linguagem dos palcos. Como ex-mágico, estabelece os primeiros truques de continuidade e efeitos especiais da história do cinema. E, por fim, como cineasta, demonstra uma notável capacidade de organização de linguagem e encenação, realizando um caos controlado que, daí em diante, passou a ser rotina nos cinemas.

Deliciosamente surreal, a história envolve um grupo de cientistas realizando uma viagem ao satélite natural da Terra, encontrando por lá os mais estranhos fenômenos e tendo que fugir de uma população nativa e selvagem. A marca de Verne é impressa tanto quanto a de Meliés, fazendo dos oito minutos do filme uma experiência divertida, reveladora e, em alguns momentos, até tocante. É a primeira demonstração de que clássicos precisam ser, mesmo, eternos.

Porque se, como revolução, Viagem a Lua será eterno, como cinema, o filme envelheceu bem melhor do que se esperava.

no 1001

Viagem a Lua (Voyage dans la Lune, França, 1902) 14 min. Mudo P&B.

Direção: George Meliès.

Produção: George Meliès.

Roteiro: George Meliès, baseado no livro Viagem a Lua de Julio Verne.

Fotografia: Michaut, Lucien Tainguy.

Elenco: Victor André, Bleuette Bernon, Brunnet, Jean D’Alcy, Henri Délannoy, Depierre, Farjaut, Kelm, George Meliès.

… Aqui, Meliès cria um filme que merece lugar de destaque entre os ícones da história do cinema mundial. Apesar do estilo surreal, Viagem à Lua é divertido e inovador, conseguindo combinar os truques do teatro com as infinitas possibilidades do cinema… (Chiara Ferrari)